Quantos inventários deixam de ser formalizados por falta de recursos financeiros dos herdeiros? Traremos fundamentos para permitir a instrumentalização notarial da alienação de bens do espólio por inventariante extrajudicial.
Em 1 de outubro de 2019, ao lançarmos nossa obra “Direito Notarial e Registral à luz do Código de Defesa do Consumidor” pela Editorial Lepanto já defendíamos a possibilidade de alienação de bens supervenientes ao óbito pelo inventariante ou administrador provisório da herança.1
Curiosamente, no dia 17 de outubro de 2022, a comunidade jurídica foi surpreendida com a publicação do Provimento 77 pela Corregedoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro.
O objetivo da regulação administrativa foi viabilizar a obtenção de recursos para pagamento das despesas tributárias para a conclusão do inventário extrajudicial, por ser comum haver herdeiros descapitalizados e muitos inventários ficarem incompletos.
Pretendemos neste singelo artigo convidar o leitor a refletir sobre os fundamentos legais que permitem a lavratura da escritura pública de nomeação de inventariante provisório a fim de alienar bens do espólio e obter recursos financeiros para fazer frente às despesas de administração do patrimônio, emolumentos, encargos dos bens, inclusive o pagamento do imposto causa mortis.
A atividade notarial e registral sempre foi reconhecida como um serviço público descentralizado e delegado com o intuito de promover a manutenção da paz social por meio da segura instrumentalização dos institutos jurídicos.
A partir da edição da lei 11.441/07 que alterou o Código de Processo Civil de 1973, foi facultado aos Notários lavrar as escrituras públicas de inventário decorrentes de sucessão legítima, desde que não houvesse interesses de incapazes.
No entanto, há um certo paralelismo lógico sistemático entre os procedimentos de inventário, seja na esfera judicial ou extrajudicial, do qual nos fundamentaremos para defender a escritura pública de nomeação de inventariante provisório para fins de alienação patrimonial do espólio.
2. Conceito de inventariante
É sabido, que o inventariante é representante legal do espólio (vide arts. 75, VII e 618, I, CPC e art. 1.991, CC), o qual adquire a posse direta dos bens do espólio, seja ela herdeira ou não, com a finalidade de administrá-los, sendo um munus público, auxiliar da justiça, concentrando em si, os poderes de guarda, administração e assistência aos bens do falecido.
Para sua nomeação, a lei dispõe de uma ordem de preferência que, na qual poderá ser alterada, pelo consenso dos beneficiários do inventário, conforme dispõe o art. 617 do Código de Processo Civil.2
Apesar do Código de Processo Civil se omitir, o Conselho Nacional de Justiça determinou obrigatoriamente a nomeação do inventariante, seja no ato da lavratura da escritura pública3 ou de forma provisória.
3. Do inventariante provisório
Contudo, antes dessa nomeação do inventariante, há muitos atos preliminares até que o inventariante preste o seu compromisso.
Esses atos são praticados por uma figura chamada ADMINISTRADOR PROVISÓRIO ou INVENTARIANTE PROVISÓRIO, nos termos do art. 613 do Código de Processo Civil4
Desse modo, entre o período entre a abertura do inventário, até a partilha da herança, o administrador ou inventariante provisório está responsabilizado por uma série de tarefas, entre elas, arrolar o acervo hereditário, pesquisar sobre a existência de eventuais credores e as dívidas deixadas pelo “de cujus”, bem como as contraídas pelo espólio, realizar a manutenção, pagar encargos e administrar os bens, a fim de evitar o perecimento.
Da mesma forma que o inventariante definitivo, o administrador ou inventariante provisório, representam o espólio ativa e passivamente, devendo agir com diligência e probidade, a fim de trazer ao inventário todos os documentos e bens necessários ao processo ou à escritura pública, com o único objetivo de realizá-la, conforme previsão do art. 614 do Código de Processo Civil5.
Como representante do espólio, o inventariante provisório ou administrador provisório, deverá ter poderes gerais de administração e por via de consequência, qualquer ato exorbitante, deverá receber poderes especiais para executá-los.
4. Da forma de nomeação do inventariante provisório extrajudicial
Apesar da natureza jurídica da administração da herança ser de condomínio voluntário ou condomínio pro indiviso, enquanto se processar o inventário estaremos em plena abstração, regulando-se pelas regras do condomínio e somente com a partilha de bens é que passaremos para a concretude da propriedade e posse dos bens.
A nomeação do inventariante se faz por escritura pública com características de representação e de negócio jurídico unilateral receptício, na qual os herdeiros deverão, assim como na procuração, outorgar todos os poderes necessários à administração da herança, nos termos do art. 661, caput, do Código Civil, podendo ser seguido a ordem estabelecida no art. 1.797 do Código Civil6
A resolução 35, de 24 de abril de 2007, da Corregedoria Nacional de Justiça, veio tratar especificamente do administrador ou inventariante provisório, somente com a inclusão dos parágrafos do art. 11, pela resolução nº 452 de 22 de abril de 2022.
Seguindo o raciocínio que o espólio, antes da lavratura da escritura deve apresentar e requerer documentos para o cumprimento das exigências normativas e legais para o inventário, chegamos a conclusão que o Tabelião de Notas deverá, com base nos documentos essenciais, como a Certidão de Óbito, a ordem de afetividade prevista no art. 1.797 do Código Civil, nomear o inventariante provisório, informando-lhe de suas responsabilidades e direitos, bem como exigirá sua aceitação no ato notarial, além do acompanhamento e concordância do membro da Ordem dos Advogados do Brasil.
5. Da permissão legal do inventariante alienar bens do espólio
Como havíamos comentado em nossa obra, é muito comum a situação em que os herdeiros não possuem recursos financeiros para arcar com os custos de administração dos bens do espólio, do inventário, imposto sobre a transmissão causa mortis, entre outros encargos.
Entendemos que o paralelismo existente entre a esfera judicial e a extrajudicial, se fundamentam ambos terem o mesmo objetivo, e tanto a previsão processual quanto a administrativa, serem normas procedimentais.
O ato notarial, ao nosso sentido, tem a mesma força do alvará judicial, como ratificam Francisco José Cahali e Karin Regina Rick Rosa, ao afirmarem que:
“…a escritura pública introduzida pela lei 11.441 tem a mesma finalidade do alvará judicial. E assim, podem os interessados, no pressuposto de serem preenchidos todos os demais requisitos para tanto, promover a destinação daqueles valores através de escritura pública, a título de partilha ou adjudicação, cuja eficácia deverá ser idêntica à do alvará judicial, impondo às instituições financeiras, outros órgãos públicos e privados e até mesmo aos particulares o respeito e cumprimento do que na escritura estiver contido.”7 (g.n.)
Como rege o art. 3º da resolução nº 35/07 da Corregedoria Nacional de Justiça, a escritura pública independe de homologação judicial para sua eficácia.
Art. 3º As escrituras públicas de inventário e partilha, separação e divórcio consensuais não dependem de homologação judicial e são títulos hábeis para o registro civil e o registro imobiliário, para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores (DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, instituições financeiras, companhias telefônicas, etc.
A nomeação do inventariante para fazer o levantamento de valores depositados em instituições financeiras, ainda é repudiada pelas instituições financeiras, em expresso descumprimento da determinação constante da escritura pública, e consequentemente da lei Processual, como colacionado abaixo um precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
1005433-61.2017.8.26.0037 – OBRIGAÇÃO DE FAZER – Inventário extrajudicial – Escritura pública que dá poderes para a inventariante praticar todos os atos de administração dos bens do espólio, incluindo o levantamento de valores depositados em nome do “de cujus” – Resistência injustificada da instituição financeira – Condenação nas verbas de sucumbência – Sentença mantida – Recurso desprovido.
(Relator: Moreira Viegas; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Araraquara – 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/04/2018)
A negativa das instituições financeiras em aceitar o ato notarial supostamente incide no ilícito penal denominado constrangimento ilegal, previsto no art. 146 do Código Penal8 e na esfera civil poderia ser considerado ato ilícito previsto no art. 186 do Código Civil9.
Além disso, quando se trata de alienação de bens imóveis, também é possível a lavratura da escritura de nomeação de inventariante, em duas situações distintas, as quais discorremos com objetividade.
A primeira situação se dá nas hipóteses em que foi celebrado negócio jurídico anterior ao falecimento, gerando uma situação de perigo iminente para a outra parte, pela obrigação pendente, como nos casos de compromisso de compra e venda de imóveis quitado. A morte do vendedor, em tese, impede a lavratura da escritura definitiva ao comprador e sua regularização perante o ofício de registro de imóveis.
Nesse sentido, quando se comprova documentalmente a quitação do preço pelo comprador, restando apenas a outorga da escritura definitiva, é plenamente possível o inventariante, definitivo ou provisório, cumprir a obrigação pendente, transferindo a propriedade de fato e de direito ao adquirente, como dispõe o art. 619, inciso I do Código de Processo Civil:
Art. 619. Incumbe ainda ao inventariante, ouvidos os interessados e com autorização do juiz:
I – alienar bens de qualquer espécie;
II – transigir em juízo ou fora dele;
III – pagar dívidas do espólio;
IV – fazer as despesas necessárias para a conservação e o melhoramento dos bens do espólio.
Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim, também afirmam a possibilidade do inventariante alienar bens como dispõe o Código de Processo Civil, apesar dos poderes do inventariante, sofrer limitações, dentro do que determina a lei pela obrigação de prestar contas.10
Sendo o inventário judicial ou extrajudicial, os herdeiros, tem o dever cumprir as obrigações pendentes ou passivas do espólio, e o inventariante deverá representar o espólio, excluindo do procedimento este bem e incluindo a obrigação passiva que será cumprida.
Trazemos à baila o posicionamento do Egrégio Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, em processo administrativo em julgamento de dúvida registral, na qual ficou assentado a desnecessidade do alvará judicial quando se tem a escritura pública de nomeação de inventariante.
Registro de imóveis – Dúvida – Escritura pública de compra e venda de imóvel prometido à venda pelo falecido – exigência de alvará judicial autorizando a outorga – Desnecessidade, em razão da lavratura de escritura pública em que se nomeou pessoa com poderes de inventariante para cumprir as obrigações pendentes do de cujus – Recurso provido. (CSM/SP Apelação n° 0000228-62.2014.8.26.0073, da Comarca de Avaré, Relator Hamilton Elliot Akel j. 03/03/15)
Situação diversa, mas igualmente possível de ser materializada é aquela na qual os herdeiros, não possuem recursos financeiros para realizar o procedimento de inventário, e necessitam alienar bens do espólio, de forma superveniente.
Esse procedimento é feito do mesmo modo que o anterior, em conformidade com o art. 619, inciso I do Código de Processo Civil, os herdeiros devem, em consenso, nomear o inventariante provisório, com poderes especiais, em conformidade com o art. 661, parágrafo primeiro do Código Civil, haja vista a natureza jurídica de representante do administrador.
Nomeado com poderes especiais11, o inventariante fará a alienação do bem ou dos bens autorizados, e os recursos oriundos serão utilizados para a administração dos bens do espólio, pagamento de tributos, dívidas e o saldo que sobejar deverá ser depositado em conta espólio, aberta para este fim.
6. Das críticas ao provimento 77/22 da corregedoria geral da justiça do estado do Rio de Janeiro
Com os fundamentos apresentados acima, na próxima semana traremos críticas construtivas ao Provimento 77, de 17/10/22 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sua definição do procedimento de alienação, por escritura pública, de bens integrantes do acervo hereditário, tendo como justificativa a promoção da segurança jurídica aos herdeiros descapitalizados na obtenção dos recursos necessários ao pagamento do imposto causa mortis e dos emolumentos necessários para conclusão do inventário, além de resguardar a Fazenda Estadual.
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1 KIKUNAGA, Marcus. Direito Notarial e Registral à luz do Código de Defesa do Consumidor: Visão estruturada da atividade extrajudicial. São Paulo: Editorial Lepanto, 2019, p. 350
2 Código de Processo Civil – Art. 617. O juiz nomeará inventariante na seguinte ordem:
I – o cônjuge ou companheiro sobrevivente, desde que estivesse convivendo com o outro ao tempo da morte deste;
II – o herdeiro que se achar na posse e na administração do espólio, se não houver cônjuge ou companheiro sobrevivente ou se estes não puderem ser nomeados;
III – qualquer herdeiro, quando nenhum deles estiver na posse e na administração do espólio;
IV – o herdeiro menor, por seu representante legal;
V – o testamenteiro, se lhe tiver sido confiada a administração do espólio ou se toda a herança estiver distribuída em legados;
VI – o cessionário do herdeiro ou do legatário;
VII – o inventariante judicial, se houver;
VIII – pessoa estranha idônea, quando não houver inventariante judicial.
Parágrafo único. O inventariante, intimado da nomeação, prestará, dentro de 5 (cinco) dias, o compromisso de bem e fielmente desempenhar a função.
3 Resolução nº 35/07 CNJ – Art. 11 É obrigatória a nomeação de interessado, na escritura pública de inventário e partilha, para representar o espólio, com poderes de inventariante, no cumprimento de obrigações ativas ou passivas pendentes, sem necessidade de seguir a ordem prevista no art. 990 do Código de Processo Civil.
4 Código de Processo Civil – Art. 613. Até que o inventariante preste o compromisso, continuará o espólio na posse do administrador provisório.
5 Código de Processo Civil – Art. 614. O administrador provisório representa ativa e passivamente o espólio, é obrigado a trazer ao acervo os frutos que desde a abertura da sucessão percebeu, tem direito ao reembolso das despesas necessárias e úteis que fez e responde pelo dano a que, por dolo ou culpa, der causa.
6 Código Civil – Art. 1.797. Até o compromisso do inventariante, a administração da herança caberá, sucessivamente:
I – ao cônjuge ou companheiro, se com o outro convivia ao tempo da abertura da sucessão;
II – ao herdeiro que estiver na posse e administração dos bens, e, se houver mais de um nessas condições, ao mais velho;
III – ao testamenteiro;
IV – a pessoa de confiança do juiz, na falta ou escusa das indicadas nos incisos antecedentes, ou quando tiverem de ser afastadas por motivo grave levado ao conhecimento do juiz.
7 CAHALI, Francisco José.; HERANCE FILHO, Antonio; ROSA, Karin Regina Rick.; FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. Escrituras Públicas: Separação, Divórcio, Inventário e Partilha Consensuais: Análise civil, processual civil, tributária e notarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 88
8 Código Penal – Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. (…)
9 Código Civil – Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
10 OLIVEIRA, Euclides de, AMORIM, Sebastião Luiz. Inventários e partilhas: direito das sucessões: teoria e prática – 23. ed. rev. e atual. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2013, p. 302
11 Poderes especiais, determinados pelo art. 661, parágrafo primeiro do Código Civil são aqueles que determinam a estrutura jurídica do negócio a ser realizado, devendo ser indicado os sujeitos da relação jurídica, o objeto a ser transacionado, móvel ou imóvel, e a forma ou condições de execução dos poderes, como o destino dos recursos oriundos da alienação.
*Marcus Kikunaga é advogado, mestre em Direitos Difusos e Coletivos, especialista em Direito Notarial e Registral, coordenador da Especialização em Direito Imobiliário, professor de cursos de pós-graduação e presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.
Fonte: Migalhas